Você já viu o vídeo acima? Apesar do tom de brincadeira, e da clara ironia, o curto filme indiano usa o humor para dar um pouco de leveza a um assunto difícil e que ainda é uma realidade: a violência sexual e o preconceito direcionado às suas vitimas. Com números alarmantes, a ameaça está presente na vida de mulheres de todo o mundo, e, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada cinco se tornará vítima de estupro ou tentativa no decorrer da vida. Os dados ainda vão além: entre os 15 e 44 anos, elas correm mais risco de passar por esse problema traumático do que sofrer de câncer ou mesmo um acidente de carro.
Além de todo o trauma, quem vive esse tipo de abuso ainda precisa conviver com questionamentos sobre sua conduta ou as roupas que estava vestindo no momento da abordagem, como bem aponta o vídeo. Essas perguntas, apesar de incômodas e descabidas, são comuns e podem vir tanto dos defensores públicos quanto da própria família, fazendo com que a vítima passe a se sentir responsável pelo que ocorreu. M.R, fonoaudióloga, 28 anos, passou por uma tentativa de estupro na adolescência, e foi recriminada dentro de sua própria casa. “Eu usava saia curta e meia arrastão, comuns na época para quem tinha um estilo mais alternativo. Quando cheguei em casa, meu pai culpou minhas roupas. Passei anos sem conseguir usar nada além de calças compridas”, conta.
Esse tipo de acusação vela evidencia o preconceito ainda latente, e a necessidade da sociedade em encontrar motivos para o comportamento abusivo. “Me parece que o problema central é a questão cultural, vivemos em sociedades patriarcais onde a liberdade masculina não tem limites e essa é uma visão muito antiga e perversa com as mulheres. Ainda é muito presente e muito forte no nosso sistema de segurança pública e a narração da vítima é sempre vista com descrédito e dúvidas. Essas perguntas têm por trás um sentido de justificar a violência sexual, trazem a culpabilização e se revestem de uma tolerância com o estupro”, explica Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, organização sem fins lucrativos que atua no campo do direito das mulheres.
Os problemas da culpa
Além de tornar o estupro uma ocorrência aceitável, a culpabilização da vítima de violência sexual traz outros problemas sociais, como a falta de denúncias e a conivência. “Mesmo sendo vítima, a mulher por vergonha ou medo de passar por isso não denuncia e, mais do que isso, silencia e não conta seu sofrimento para ninguém, deixando de buscar socorro nos serviços de saúde. Isso é errado, você só sente culpa e vergonha se você é inadequado, e quem está fora dos padrões é na verdade o estuprador. A mulher se coloca nesse lugar porque ela é vítima também dessa sociedade”, diz a especialista. Ela lembra, ainda, que não denunciar é deixar as portas abertas para os agressores e permitir que outras mulheres passem por essa situação extrema.
Procure ajuda
Caso você seja vítima de violência sexual, o primeiro passo é procurar ajuda e se fortalecer. “É um momento tão extremo que devemos nos aconselhar por todas as portas. Não fique só, procure ajuda entre os amigos, família e delegacias. Se você precisar se reforçar antes de ir procurar pela polícia, faça isso, mas é importante denunciar esse agressor para que ele não fique tão livre, você tem esse direito. O estupro tem uma coisa dúbia, porque ele tem essa raiz de um crime calado, trancado a quatro paredes”, indica.
Um ponto importante é frear a vontade de tomar banho antes de visitar o hospital ou a delegacia, já que você estará lavando a prova do crime. “É uma violência tão pesada para o corpo e a alma que elas tomam banho para tentar lavar esse sentimento. Mas ali estão evidências desse crime e é essencial aguentar um pouco”, adverte.
Conheça seus direitos
Apesar do tabu, existe uma série de políticas públicas que garantem à vítima de violência sexual apoio e proteção. A primeira delas é o Código Penal, que vê o estupro como um crime hediondo. “Atualmente houve uma mudança no código. Antes, estupro era apenas o ato com penetração e o restante era atentado violento ao pudor. Hoje, não é apenas a conjunção carnal que é considerada estupro, qualquer crime contra a liberdade sexual, qualquer ato libidinoso mediante grave ameaça ou sem consentimento da vítima é sim estupro”, diz Ana Paula Meirelles, defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher.
A Lei Maria da Penha também prevê apoio às mulheres vítimas de agressão sexual, contanto que praticada em âmbito familiar. “É importante reforçar que o que configura o estupro é a falta de consentimento. Portanto, um marido que força sua esposa também está cometendo esse crime. A Lei Maria da Penha trata de formas de violência dentro desse contexto familiar, e é uma forma de agravante que permite julgamento em vara especializada e proteção da vítima”, conta.
De acordo com a Constituição, toda vítima de violência sexual tem direito a atendimento publico imediato, mas apenas esse ano foi aprovado no Senado Federal um projeto de lei que garante esse atendimento em qualquer hospital da rede pública, antes realizado apenas em unidades específicas. O texto será encaminhado para sanção presidencial, e, se aprovado, entrará em vigor em um período de 90 dias.
Ao procurar ajuda até 72 horas após um estupro, é dado a mulher um contraceptivo de emergência, para evitar uma gravidez indesejada. Caso isso não aconteça, e a vítima engravide, ela tem o direito de passar pela interrupção legal da gestação, ou entregar o bebê no seu nascimento. As duas opções são populares, visto que muitas não conseguem se ligar afetivamente ao filho, por se lembrarem do evento traumático. “O aborto legal é uma opção da mulher, e são dadas a ela várias alternativas além dessa. Depois de passar por um psicólogo, é proposto a ela algumas opções, e ela pode escolher. A única questão é que existem limitações: a gestação precisa ter no máximo 20 semanas e o feto não pode pesar mais que 500 gramas, senão configura-se um parto emergencial”, finaliza.